26 de julho de 2006

A secularização da família

Cardeal Cañizares: Totalitarismo, direitos humanos e democracia (I)
Entrevista ao primaz da Espanha e vice-presidente da Conferência Episcopal

TOLEDO, terça-feira, 25 de julho de 2006 (ZENIT.org).- Tendo como pano de fundo o V Encontro Mundial das Famílias, recentemente realizado em Valência, Jaime Antúnez, diretor de Humanitas, revista de antropologia e cultura cristã da Pontifícia Universidade Católica do Chile, entrevistou detalhadamente o cardeal Antonio Cañizares, arcebispo de Toledo, primado da Espanha e vice-presidente da Conferência Episcopal espanhola. Estes são alguns dos principais pontos da conversa.

-- Em uma cultura como a que se impõe na Espanha, na Europa e em todo o Ocidente, com uma forte carga ideológica secularista, podemos afirmar que é no âmbito da família onde este secularismo se manifesta de forma mais evidente e agressiva?

-- Cardeal Antonio Cañizares: Acho que não é a família o âmbito onde se gera esse secularismo, senão que é o âmbito mais afetado por ele. A família na Espanha é concretamente uma família cristã, ainda quando não for praticante, ainda que seja muito sacudida pelos ventos da secularização, por todo o poder mediático que a ideologia relativista difunde. Existem recursos ainda muito valiosos na família espanhola, e estamos a tempo de que ela recupere sua verdade. Mas também é certo que a família espanhola, pelas pressões desse poder mediático, pelas legislações tão agressivas contra ela, está sofrendo um forte relativismo, que se baseia em viver fora da verdade que a constitui, com o qual as pessoas caem muitas vezes em situações lamentáveis.

-- Suas declarações descarregaram fortes responsabilidades no Governo socialista pelo que acontece com a família.

-- Cardeal Antonio Cañizares: Nos últimos anos, assistimos a uma escalada contra a família por parte do Governo socialista, ajudado por outras forças políticas e outros poderes ou grupos, como o do império gay ou o de certas ideologias e organizações feministas, que tentam impor a ideologia de gênero. A Espanha ocupa um dos últimos lugares da Europa em política familiar, o de menos ajuda à família; é, junto com a Grécia, a nação européia com o menor índice de natalidade, onde a população jovem mais decresceu nos últimos 25 anos, e onde mais se incrementou o número de abortos nos últimos dez anos; ocupa o terceiro lugar no crescimento de rupturas matrimoniais na última década. E, simultaneamente, foi mais longe que nenhum outro país da Comunidade Européia em matéria legislativa contrária e nociva para a família.

Novamente, é preciso dizer que o futuro da família depende de que esta possa viver sua verdade, de que supere o relativismo ao qual é empurrada. A família poderá ser educadora e transmissora da fé se superar esse relativismo. Se não o superar, continuará em uma crise, crise de fé que arraiga em uma crise de verdade, porque não tem fundamento principal para apoiar-se e viver com toda esperança o que ela é.

-- No final do passado mês de março, por ocasião dos 40 anos da clausura do Concílio Vaticano II, a Assembléia Plenária da Conferência Episcopal espanhola, da qual o senhor é o Vice-presidente, emitiu uma estudada declaração titulada «Teologia e secularização na Espanha» -- de ampla repercussão em todo o mundo católico ibero-americano -- na que se expõem os efeitos destrutivos da ideologia secularista no interior da teologia moral. Isso também tem relação com o tema da família, concretamente com a missão que ela tem de transmitir a fé, tema central do V Encontro Mundial em Valência?

-- Cardeal Antonio Cañizares: Efetivamente. O ensinamento teológico-moral na Espanha não ajudou a viver a verdade da família, não ajudou a que a família cristã seja essa pequena igreja doméstica que a «Familiaris consortio» deseja. Não ajudou a que se viva a família cristã como sinal e como ícone da aliança de Deus com a humanidade, a que a família seja lugar de encontro com Deus na comunidade.

-- E como se produziu isso, que uma teologia moral induza à secularização da família?

-- Cardeal Antonio Cañizares: Isso se produziu porque a base dessa teologia moral não foi precisamente a antropologia que a Revelação mostra em Jesus Cristo. E, claro, tudo isso se difundiu depois em cursos pré-matrimoniais, difundiu-se através de movimentos familiares que propagaram, por exemplo, uma leitura falsa da «Humanae vitae» de Paulo VI, ou inclusive contrária a ela, encontrando-se nela muitas das chaves dessa teologia moral. Propugnou-se, por conseguinte, que o importante era simplesmente o amor e não a abertura à vida. Ensinou-se que, sendo o matrimônio efetivamente indissolúvel, essa indissolubilidade radicava somente em uma decisão dos cônjuges.

É, como podemos ver, uma moral que se baseia unicamente na decisão pessoal e não no que são as realidades objetivas, que nos são dadas pela Revelação e com a mesma natureza criada. Essa teologia moral, em resumo, não difundiu o Deus criador, a realidade suprema que fez o homem, e o fez à sua imagem, homem e mulher.
Tudo isso influenciou muito negativamente na secularização da família. E se a família se seculariza, seculariza-se a sociedade inteira.

-- Alguns bispos espanhóis deram a conhecer, em diferentes declarações, que nesta nação se dá atualmente um fato inédito na história da civilização: a supressão do matrimônio.

-- Cardeal Antonio Cañizares: Aqui na Espanha, com efeito, o mais grave que aconteceu na legislação é que no Código Civil desaparece a realidade do matrimônio, sendo substituída simplesmente pela união de pessoas; e que as condições de «pai» e «mãe» são substituídas simplesmente pela denominação de «cônjuge». Conseqüentemente, o matrimônio não existe. Em nenhum lugar do mundo se fala de matrimônio de pessoas do mesmo sexo; matrimônio propriamente dito só existe entre homem e mulher. No Código Civil, isso é um fato enorme, desapareceu de fato a expressão jurídica natural do matrimônio entre um homem e uma mulher.

-- Conversando sobre essa situação com o arcebispo de Granada, Dom Javier Martinez, ele me dizia o seguinte: «Eu acho que há dois aspectos bastante visíveis na revolução niilista que se vive atualmente na Espanha. Um é o desejo de fazer desaparecer da vida cultural e social qualquer elemento, inclusive residual, da tradição cristã ou de referência à tradição cristã, ao conceito cristão do humano. Depois, unido a isso, está a invenção de ‘novos direitos’, porque o homem é concebido como um pequeno absoluto para quem tudo é possível, e tudo aquilo que é possível e agradável, imediatamente agradável, sem considerar as conseqüências, simplesmente se converte em um direito de forma fictícia». O senhor poderia comentar este segundo aspecto, referente aos «novos direitos»?

-- Cardeal Antonio Cañizares: Direitos humanos, nessa nova concepção, já não são os que estão inscritos na natureza humana. Direitos humanos já não são algo que antecede a decisão do homem, a decisão das maiorias, a decisão do poder, senão algo que se estabelece pelo poder, seja este o poder totalitário de um homem, o das maiorias, ou o que se gera através da manipulação da opinião pública. Em definitiva, o poder. Desta forma, é o ser humano quem decide e quem dá explicação absoluta de si mesmo, com o qual não há direitos humanos.

Neste momento, estamos assistindo -- e a Espanha é um dos expoentes mais nítidos -- a uma crise profundíssima dos direitos humanos, mas com essa crise profundíssima não pode haver democracia.

-- O senhor fala de totalitarismo...

-- Cardeal Antonio Cañizares: É uma atitude totalitarista. Não importa se é um totalitarismo parlamentar, ou seja, o totalitarismo de um senhor, mas é totalitarismo. O que vale é o que a maioria ou o poder supremo define, e se define algo alheiro à ordem natural criada, por que não... E isso se eleva como critério. É o que vimos com o discurso da investidura do presidente, onde ele afirmou que promoveria que cada um pudesse decidir sobre o seu sexo. Mas se cada um pode decidir sobre tudo isso e tudo é questão de decisão, por que não será também legítima a violência, por que não será legítimo o roubo, se é a pessoa que decide. Nesta concepção, não há nada objetivamente bom nem mau.

-- O positivismo em sua expressão mais radical.

-- Cardeal Antonio Cañizares: Exato.

--Chamou muito a atenção nos países americanos – e uma vez mais de modo exemplar – a reação dos católicos espanhóis em defesa do verdadeiro matrimônio e da família tradicional. Não é habitual que dois milhões de pessoas saiam às ruas, como um junho passado, e que um grupo importante de bispos acompanhe uma manifestação dessa natureza convocada por uma organização civil. De que maneira crê Sua Eminência que o V Encontro Mundial das Famílias fortalecerá essa capacidade de resistência frente ao claro e inédito propósito que se dá na Espanha de eliminar a instituição do matrimônio?

--Cardeal Antonio Cañizares: Quando as famílias recolheram firmas, quando as famílias saíram às ruas em duas ocasiões, foi para dizer sim à família, sim ao matrimônio entre o homem e a mulher, sim à vida, sim ao que está na entranha da verdade da família; sim ao direito e ao dever inalienável que os pais têm de educar seus filhos conforme suas próprias convicções, sim a esse ensino religioso que os pais pedem, sim a uma educação que seja verdadeiramente humanitária. O Encontro Mundial das Famílias foi a ratificação por parte do Papa e por parte também de outras famílias, de outras partes do mundo, disso mesmo que as famílias espanholas estão defendendo, propondo. E têm se sentido muito alentadas; o Encontro de Valência terá sido pra elas não somente um ar fresco que chegou, mas que com a grande força do Espírito e a grande força da Igreja que lhes disse: adiante!, tende confiança em seus próprios recursos e em sua própria realidade, que por aí vai o futuro e o melhor serviço que podeis fazer à sociedade.

[A segunda parte desta entrevista será publicada esta quarta-feira, 26 de julho]

ZP06072520

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